Mulheres pré-delivery
Clotilde Tavares | 9 de julho de 2009Há uma história interessante sobre um homem que estava levando três cachorros para o sítio. Amarrou os três animais na parte traseira da carroça e tomou a estrada. Nenhum dos cachorros estava satisfeito com a mudança. O primeiro, resistindo muito, sempre olhando para trás e tentando se desprender e voltar, chegou ao destino com o pescoço todo ferido, magoado pela coleira. O segundo conformou-se e, cabisbaixo, acompanhou com passos pesados a andadura da carroça. O terceiro, a exemplo dos dois primeiros, também não queria ir. Mas já que nada podia fazer, pulou para cima da carroça e adormeceu, embalado pelo balanço das rodas. Ao chegar, estava relaxado e disposto a encarar o inevitável da nova vida.
Lembrei-me disso enquanto lavava louça e refletia sobre as repetitivas tarefas domésticas. É um trabalho ingrato, não remunerado e, pior, que ninguém reconhece. Forrar as camas, varrer, limpar, lavar a louça, cozinhar. Todos os dias é preciso que alguém desempenhe essas funções, senão o mundo vira um caos e a sujeira e o desleixo tomam conta das nossas vidas.
Eu gosto de cozinhar, mas detesto ter que fazê-lo por obrigação. Vejo agora nas revistas essa moda nova de “os homens na cozinha”. Fala-se muito de toda uma geração de candidatos a “chef”, e é comum matérias e reportagens com atores e modelos na cozinha, fazendo “uma comidinha”.
Anuncia-se nas revistas de decoração novos “modelos” de cozinha, mais modernos e funcionais, porque “agora o homem está na cozinha”, como se os séculos que a mulher passou nesse ambiente não merecessem atenção. Na TV eu vi um anúncio onde um cara que mora sozinho prepara uma macarronada e, para minha surpresa, deixa atrás de si tudo limpo e arrumado. Com todo o respeito pelos dotes masculinos, autênticos ou não, eu queria ver um camarada desses encarar no dia-a-dia a trinca café-almoço-e-jantar, como a maioria das mulheres faz e fez durante toda a vida. Uma coisa é cozinhar pratos charmosos e diferentes numa noite especial enquanto se beberica um vinho e ouve uma musiquinha; outra é passar a vida fazendo isso, às vezes sem o menor reconhecimento dos que consomem a comida.
Penso muito nas mulheres mais velhas da minha família, na minha mãe e nas minhas tias, mulheres “pré-delivery”, que não podiam mandar tudo às favas e pedir comida chinesa pelo telefone. Mulheres que tiveram e ainda têm que fazer isso a vida inteira e sufocar seus outros talentos. São como os cachorros atrelados à carroça. Uns reclamam, outros ficam cabisbaixos e outros ainda conformam-se com a situação, dando até a impressão de que o fazem alegremente Mas quantas vocações não se consumiram e estiolaram ao calor do fogão doméstico, da pia de louça suja ou do tanque cheio de roupa?
Feliz sou eu, que posso pedir comida pelo telefone e sentar no computador para escrever. E encerro esta reflexão com um poema de Diva Cunha, do seu livro “Canto de Página”, palavras belas e exatas sobre essa terrível condição à qual se prenderam e ainda se prendem muitas mulheres por esse mundo afora:
Minha mãe diz
que eu sou da pá virada
a da vida torta
os modelos dela são outros:
santa terezinha do menino Jesus
santa rita de cássia
santas
fora as santas domésticas
que foram sacrificadas
no dia a dia
e ninguém viu
sangradas como galinhas
maceradas em vinha d’alhos
postas a dormir no sereno
para secar odores
enfurnadas como bananas verdes
esfregadas nos ladrilhos
claros dos banheiros
costuradas em botões de quatro furos
esbofeteadas e sacudidas
como colchões e almofadas
para desprender o pó das horas
secaram todas
nos linhos brancos
dos lençóis bordados
ao morrer, não morreram
entregaram a alma a deus,
que provavelmente não as perdoou
pelo gasto inútil
que fizeram dos seus talentos.”
Lindo Clotide!
tenho gostado demais de ler você..bela!
bjo
Lembrei de Tears for fears, Woman in Chains http://m.letras.terra.com.br/tears-for-fears/39674/traducao.html Esse mundo melhorou muito depois delas livres
Gosto muito de ler seus posts diários !! Parece que encontrei alguém com tempo, disposição e capacidade para escrever tudo que vai dentro de mim e que não consigo expressar em palavras.
Só eu que não tenho dinheiro pra comprar comida por telefone sempre que tenho vontade? Chuif! Abração, Clotilde!
Concordo com tudo que escreveu, parece eu gritando pro marido!!!!
Trabalho (meio) ingrato, não aparece, só quando não é feito!!!! Dona de casa!!! eta profissão perigo.
Obrigado por verbalizar meu pensamento, posso enviar este texto para amigas?
Obrigado
[…] Enfim, vale realmente a pena dar uma olhada na íntegra – tá bem ali no Umas & Outras. […]
Excelente texto. Com a devida vênia, fiz o link lá para meu blog/site.
[ ]s!